quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

MANJAR DE DEUSES

Nesta época de tolerância, reflexão e abundância
em que devemos ser solidários e irmãos
faz do meu corpo a tua boa mesa de consoada
saboreia sem maneiras e de boca cheia
todo o meu recheio, iguaria deveras, especial
que te lapidará o paladar libidinoso, franco, ansioso.

Abre a mesa toda, com talento, jeitinho e destreza
que sei possuíres, porque tens tantas artes
e enfeita-a com uma tolha encarnada e arrendada
que pareça uma colcha de seda amarrotada
pelos exageros e fomes dos nossos corpos suados
que somente se desejam unir e consumir, petrificados.

Começaremos pelos aperitivos, habituais, demorados
pois só à meia noite se iniciará a nossa festa
como mandam a tradição, o desejo e a inquietação
que não nos dará tréguas, nem mínimas oportunidades
de não nos aproveitarmos ao máximo, um do outro
numa deglutição transcendental, incontida e transversal.

Inspecionarás a toalha e tudo o que lá está, esfaimado
cheirarás, tocarás, afagarás todos os manjares
onde com a tua fé, gigante, fervorosa e miraculosa
te entregarás, na totalidade e por inteiro
fazendo do meu corpo um bordel real de paladares
não sabendo tu por onde começar, ao olhar tanta beleza.

Deu-se início à cerimónia no meu corpo, tão profano
de uma maneira aparatosa e maravilhosa
fazendo nós inveja às divindades, ou aos mortais
mas que fazer, se nós somos não iguais?
Ouviram-se silêncios e sussurros, que na consoada
não são usuais, pois todos estão de alma pura e lavada.

Deslizaste o olhar pelos rijos pináculos, deslumbrado
deliciando-te na minha pele moreninha
chupando frutas cristalizadas, apetitosas, gostosas
de um modo tão desmedido, louco, compulsivo
como se fosse uma mulher vulgaríssima, que utilizas
onde te alivias e sacias, sem nexo, e somente, por sexo.

E a vida brota, faz-se semente, que em mim espalhas
ao som dos sinos travessos que estão em nós
pegando as tuas mãos já trémulas, as acendalhas
que irão abrir as minhas prendas, mimos
ao calcorreares, lentamente, o meu corpo, alvoroço
quando me romperes, já sem paciência, como um menino.

Eu, na mesa, toda estendida, à mercê dele e à deriva
vou receber os seus gestos, ficando cativa
na robustez dos seus braços, fortes e abobadados.
Estou assustada, sem pinga de sangue e aterrorizada
e no Natal que tanto frio faz. Deus, afasta o mal
e leva-me para um lugar, onde esteja acolhida e protegida.

Vejam só do que aquela terrível cabecinha se lembrou!
Barrou-me o corpo todo, com mel e rosmaninho
aos quais juntou frutos secos, chantilly e fatias doces
com creme de chocolate polvilhado com coco
que deram à minha anatomia um aspeto de iguaria
só para ele, como nos contos de fadas. O homem é louco!

Nesta figura, eu nada podia fazer. Ai, eu vou endoidecer.
Já sei. Vou fazer-me de morta. Que importa?
Assim, talvez ele perca o apetite que tem por mim
pois como não tenho reação, nem excitação
talvez ele vá espreitar, curioso, a chaminé da cozinha
à espera que o Pai Natal lhe tenha lá deixado uma prendinha.

Nada! Continua a esmiuçar-me, a tocar-me, a soltar ais
e nem dá pelo tempo passar, neste desatino
enquanto eu, barrada, melhor que doces conventuais
nem posso falar, pois está-me sempre a beijar
a acariciar-me o cabelo, a abraçar-me, a lambuzar-me
e eu para aqui fico como escrava, sem me conseguir libertar.

O que é isto? Ouço movimentação e agitação na cozinha
dizendo-me o meu coração, que ele irá até lá
para ver o que se está a passar. E foi! Tinha de se dar!
É neste espaço de tempo, que eu, pé ante pé, devagarinho
me desloco, em surdina, à casa de banho principal
trancando a porta, não me olhando, aterrorizada de espanto.

Comecei a rezar para me conseguir ver, olhar no espelho
pois tinha muita curiosidade, pranto e terror
e quando, repentinamente, vi o meu rosto e corpo
desatei numa choradeira, atirando-me para a banheira
que ficou alarmada, sarapantada e muito admirada
com o banho tão pormenorizado, total e mais que demorado.

Que alívio eu senti! Assim sim. Isto é leveza e limpeza
que me faz cheirar a gente, finalmente.
Quando ele der por mim, já estarei bem longe daqui.
Vesti-me de vermelho para condizer com a época festiva
embrulhei-me glamorosa numa capa quentinha
que me devolveu a minha graciosidade, beleza, sensualidade.

Porém, quando eu tentava abrir a porta, bem mansinha
senti umas mãos poderosas e inclementes
a agarrarem-me, a prenderem-me, a centrifugarem-me.
Fiquei apavorada, despedaçada, desnorteada
com o que estava a suceder, mas era lógico prever
porque com aquele homem, eu já sabia, que não brincaria
e muito menos iludir, enganar, mentir, falsear e fugir
pois teria a resposta apropriada, na hora certa, e sem hesitar.

Fitou-me, pegando no meu rosto com força e brutalidade
forçando a minha tenra boca, beijando-me
de tal modo, que perdi a consciência e a resistência
que eu pensava ter em doses industriais
mas na hora exata, no momento e naquela atrapalhação
fui marioneta desengonçada e descontrolada, sobretudo nada.

Depois, despiu-me toda, de forma incrível e conhecedora
pedindo-me que o despisse e que o sentisse
não sabendo como fazer, onde começar, mas tinha de ser.
Cumpri religiosamente a sua vontade e o seu pedido
embora com timidez e com pudor, mas com amor, confesso
que esqueci o que poderia suceder, após este ato nada pensado.

Pegou-me ao colo, sorrindo, pois sabia que queria carinho
levando-me para o quarto dele, que era fatal
ofertando-me à cama com gestos melosos e amorosos
cobrindo o meu corpo com o seu, compactamente
e mais não vos irei contar, porque vocês já estarão a salivar
vivendo no mundo virtual, ao lerem, aquilo que eu vivi no real.


CÉU

domingo, 13 de dezembro de 2015

VENENO

Perco-me nas palavras quando escrevo
perder-me-ia, de qualquer maneira.
Se pensarmos bem
tudo pode ser perda
e calar, não desabafar, é muito mais.
Escrevo, porque sinto falta e preciso
e escrever é uma dependência, uma droga
da qual não me abstenho
sem a qual não posso passar
e é nela que sobrevivo, existo e que vivo.

É o meu veneno fundamental e essencial
composto por alentos e desalentos
enfim, sentimentos
que vou buscar aos guetos da vida
retendo-os na imaginação saturada
para os deixar depois escorrer pelos dedos
já sem segredos. Não quero o silêncio.
Que o meu coração jamais se cale
e aquilo que não me atrevo a afirmar
seja ele que o diga, se pronuncie e que fale.

Peço-lhe que o faça de forma precisa e clara
sem rodeios, sem ambiguidades
e pode até melindrar
não importa. Quero só a verdade
a frontalidade, que sei não ter perdido
a clarividência da minha voz
o comportamento do meu olhar
o porte dos meus sentidos
e sobretudo que as suas palavras
sejam rio desabrido
que com alegria corre para a foz
tendo a sensação plena do dever cumprido.


CÉU

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